Leonardo di Ser Piero da Vinci nasceu na Itália e se destacou por sua obra que transita por conhecimentos científicos, anatômicos, gráficos e matemáticos.
O "Homem do Renascimento", contudo, está bem distante do mito sobre-humano que muitas vezes lhe é atribuído de modo idealizado. Talvez, a grande genialidade de Leonardo seja, sobretudo, a sua curiosidade infinita sobre o mundo.
Para tentar refletir um pouco mais sobre as características desse homem tão singular que marcou uma era, os professores e pesquisadores em História da Arte Eduardo Kickhofel e Luciano Migliaccio analisaram os documentos da época e até os manuscritos deixados por da Vinci.
Em entrevista, a dupla de pesquisadores destaca algumas das mais importantes passagens da vida e da obra do artista.
Quem era, de fato, Leonardo da Vinci?
A pergunta segue sendo difícil de responder, mesmo para quem se dedica a pesquisar a vida e obra do artista por longos períodos. Apesar de extraordinária, pouco se sabe da vida mais íntima de Leonardo da Vinci.
"Ele era um homem muito fechado, apesar de ter escrito milhares de anotações em meio aos 7 mil manuscritos que chegaram até nós. Mas em nenhum momento ele conta nada sobre si próprio. Ele anota tudo, até coisas banais da sua vida, mas não sabemos nada de suas relações afetivas, por exemplo", explica o professor Luciano Migliaccio.
Nem artista, nem cientista, mas um artífice
Leonardo da Vinci não foi um artista, nem um cientista, como muitos estudiosos o classificam. Ele foi um artífice, para usar o termo da época. O artífice fazia esculturas e pinturas seguindo encomendas e contratos. Em poucas palavras, ele era um prestador de serviços.
"E não era o único. Não pense que o Michelângelo pintou o teto da Capela Sistina porque ele estava a fim. Ele o fez porque o Papa mandou e pagou a ele. Para nós, um artista é um sujeito que faz obras expressando a sua subjetividade. E isso não estava em jogo no Renascimento. Talvez o primeiro artista tenha sido o Francisco de Goya, no começo do século 19", explica o professor Eduardo Kickhöfel.
Para o pesquisador, fala-se muito sobre Leonardo da Vinci e a sua relação com arte e ciência, mas nunca definiu-se o que era arte e o que era ciência no contexto da época. "Para Leonardo, a arte se referia à ideia de conhecimento. Nos textos da época, a arte significava o conhecimento racional para produzir coisas. Para nós, arte é a obra de arte", argumenta.
A ideia de obra de arte como entendemos hoje é recente, tem cerca de 200 anos e surgiu no final do Romantismo. "Na época de Leonardo da Vinci não havia a concepção de obra de arte, já que a arte tinha funções religiosas e cívicas", defende o pesquisador.
Um exímio desenhista
"Leonardo da Vinci adota o desenho, a representação gráfica, que vem do seu saber de artista, como formalização também de um saber científico. Ele usa a representação gráfica como a formalização de uma experiência visual em favor da ciência."
A definição do professor de História da Arte Luciano Migliaccio destaca que na época do Leonardo, graças ao estudo da perspectiva, se começava a entender que a representação gráfica também poderia ser submetida a uma razão matemática.
"O Leonardo era realmente um gênio, não há como negar que ele era fora do ordinário, e ele se aprofundou nesse método novo para contribuir com o saber científico. Ele colocou a experiência visual como centro também do conhecimento humano", explica Migliaccio.
De acordo com ele, o desenhista não tem apenas uma habilidade manual. A graça da perspectiva é que ele pôde colocar um critério de verdade em sua representação.
A curiosidade sem preconceitos
Talvez, Leonardo da Vinci nos surpreenda tanto porque a forma como vemos o conhecimento hoje é bastante especializada. Arte e ciência, por exemplo, são coisas muito distintas. Porém, no Renascimento, a divisão dos saberes era mínima, como explica Eduardo Kickhöfel.
"Naquela época, usava-se a palavra filosofia para qualquer conhecimento baseado em princípios e causas. Eu digo isso porque as artes faziam parte da parte prática da filosofia. As artes, no sentido da época, como conhecimentos, eram organizadas em princípios e causas tanto quanto a física, por exemplo. Então, era 'fácil' para uma pessoa transitar da arte para a ciência, e vice-versa."
Para o pesquisador, Leonardo da Vinci destacou-se por seus interesses amplos, como a pintura e, sobretudo, o desenho, mas também um pouco da escultura, da anatomia óptica e física, e também das matemáticas.
O interesse genuíno pela anatomia
Para pensarmos nos desenhos de Leonardo da Vinci, sobretudo acerca da anatomia humana, é preciso fazer um retorno histórico. Não era proibido fazer dissecações de cadáveres no século 15, mas também não era uma coisa tão fácil. Desde o século 14, esse tipo de procedimento em espaços como a universidade está bem documentado em textos históricos.
Porém, as dissecações seguiam uma espécie de ritual. Lia-se um texto escrito por um médico de Bologna que orientava o processo. Quem tocava no corpo, por exemplo, era uma pessoa mais baixa da cátedra, considerado "o indigno". Os médicos, por exemplo, não se aproximavam do cadáver.
"Naquele momento, não havia a ideia da pesquisa, não existia dissecar um corpo para descobrir alguma coisa. Era um ritual", explica Eduardo Kickhöfel.
Por isso, o conhecimento anatômico da época era transmitido, sobretudo, por meio de textos. Não havia ilustrações anatômicas. E foi o Leonardo da Vinci que, no fim do século 15, começou a desenhar os corpos. Pode-se dizer que ele "inventou" a ilustração cientifica.
"Leonardo não tinha medo ou preconceito de sujar as mãos. Ele investiu sua curiosidade na anatomia, dissecou mais de 100 corpos e descobriu coisas novas ao expressar o seu conhecimento por meio de figuras. Depois, ele se dedicou a estudar o desenho das rochas e dos movimentos das águas, também", destaca Kickhöfel.
Para Leonardo, observar o mundo era sempre uma oportunidade de aprender.
Créditos: Conteúdo originalmente publicado em HuffPost Brasil